Resenha Um defeito de Cor – Ana Maria Gonçalves

A leitura de Um defeito de cor foi sem dúvidas o meu maior desafio literário de 2020. Primeiro ponto que afasta muita gente dessa leitura são suas quase 1000 páginas. Desde que comecei a trabalhar na internet com literatura sempre tive o desejo de ler este livro, mas sempre posterguei pelo tamanho. Em meio a quarentena resolvi me aventurar em literaturas que poderia me tirar da zona de conforto. Aqui está o segundo ponto: medo do que eu poderia ler nesta história. Por isso, vou começar essa resenha com dicas e informações prévias a leitura.

Se você é alguém que não se incomoda com spoiler tudo bem ver a sinopse e saber sobre o que é o livro, caso contrário não leia porque tem uma informação que será dada no meio do livro. Mesma coisa eu digo com relação a vida do Luís Gama, se você já sabe quem é esse personagem histórico ok, mas se quer ter a surpresa de descobrir ao longo da leitura não busque tanta informação assim. Veja depois da leitura!

Outra dica importante: o livro possui muitos gatilhos de violência, violência sexual em sua primeira metade. Então só leia este livro se você estiver bem.

Esse aviso é reforçado se você é uma pessoa preta porque durante o livro são narrados fatos do período escravocrata que não aconteceram de forma pacífica como vimos nas novelas das 6h.

A começar pelo nome do livro: Um defeito de cor era um decreto que existia no período colonial do qual pessoas negras que quisessem ingressar no clero ou em serviço militar deveriam solicitar a dispensa do defeito de cor, quase um pedido de desculpas pela cor da pele.

Antes de eu ingressar aos pormenores da história devo dizer que o livro é narrado em primeira pessoa, pois é uma carta da Kehinde. É um romance de formação: da infância a velhice da protagonista. Há uma riqueza de detalhes sobre os lugares por onde esta personagem passa dando um retrato perfeito das ruas, pessoas e comidas do século XIX. Você irá encontrar informações sobre a formação da religiosidade origens africanas em terra brasileira, as disputas geopolíticas em África a partir da segunda metade do século XIX. O livro aborda uma complexidade de relações humanas que não é possível separar somente na dualidade: bem e mal.

Aí vai mais uma dica: leia com um caderno do lado para anotar as referências do livro ou crie um código de cores na sua leitura, pois, você irá se perder em tantas informações.

Você já pensou a potência que é um romance narrado em primeira pessoa por uma mulher preta em pleno período escravocrata no Brasil?

O romance é divido em 9 capítulos cada um com uma epígrafe de um provérbio africano que dão o tom daquele capítulo. O primeiro capítulo é dedicado ao sequestro da Kehinde, sua irmã e avó em África para o Brasil. É sufocante a leitura deste capítulo com seus detalhes insalubres dos tumbeiros que transportaram negros durante esse período colonial. Assim como é doído ler o que era feito com aqueles que não suportavam a viagem. Como eu disse antes a autora entrega detalhes ao ponto de você se sentir dentro das cenas narradas.

Vários acontecimentos históricos do Brasil e do mundo são analisados pelos olhos de uma mulher preta escravizada como é o caso da independência do Brasil.

Achei o assunto interessante mesmo não entendendo, pois era como se os argumentos que usavam contra a dominação portuguesa também valessem contra a dominação que eles tinham sobre nós, os escravos. A mesma liberdade que eles queriam para governar o próprio país, nós queríamos para as nossas vidas. A exploração era a mesma e até mais desumana, porque tratava de vidas e não apenas do pagamento de impostos e da ocupação de cargos políticos.

Outra leitura importante feita pela personagem é com relação as discussões de tratados pelo fim do tráfico de escravizados no Atlântico devido as pressões inglesas.  Assim como várias tensões políticas na Bahia  antes mesmo da Revolta dos Malês, que é a grande revolta foco do livro. Sem spoiler posso dizer que a autora explora muito a preparação  e as consequências de tal acontecimento do que  o fato em si.

Muçurumins – Islã na Bahia

Fatumbi disse também que os filhos de orixás consideravam todos os muçurumins filhos de Oxalá, que tem o branco como a cor símbolo e a água como elemento, duas coisas muito importantes nos cultos dos muçurumins. Ele perguntou se eu já tinha ouvido falar em odus e eu disse que sim, mas o que eu não sabia era que um deles orientava a conversão à religião dos muçurumins.O Fatumbi disse que a religião de Alá tinha sofrido algumas mudanças quando chegou à África,levada pelos mercadores árabes que lá estiveram muito antes dos portugueses.

Um destaque desse livro é a riqueza de informações sobre a religiosidade aqui no Brasil no início do século XIX. Os muçurrmis aparecem como um grupo importante na luta pela liberdade dos escravizados. É com eles que a protagonista irá conhecer várias formas de resistência ao regime escravocrata, como é o caso das  confrarias. Essas eram organizações em que seus membros pagavam uma mensalidade e com este dinheiro compravam alforrias. Assim o livro mostra algumas formas de resistência mais brandas que nem sempre sabemos que existiam aqui.

Kehinde

Como um bom romance de formação a protagonista passa por algumas questões que vão mudando suas percepções sobre o mundo. Kehinde criança perde sua infância muito rápido com acontecimentos violentos ao seu redor. Sua gana de manter seus vínculos com África são desde a negação ao batismo branco, a busca por manter seus orixás e vodus próximos, a ilusão de que seus melhores momentos estavam lá na sua terra natal.

Durante a leitura várias vezes fiz as contas da idade de Kehinde porque ela é apresentada como uma mulher muito cedo. A grande marca dessa personagem é sua capacidade de reerguer-se após vários traumas e golpes. Muita coisa boa acontece na vida dela, mas como ela mesma explicava eram momentos de calmaria para guardar as energias para as tempestades que vinham. Uma comerciante com tino para negócios que buscava sempre encontrar as melhores oportunidades independente de onde ela estivesse.

Kehinde é uma personagem com muitas andanças: Savalu (sua cidade natal), Uidá (onde foi sequestrada), Ilha de Itaparica (fazenda- escravizada); Salvador ; Rio de Janeiro; São Paulo; Santos; Maranhão; Uidá; Lagos. Essa mobilidade  da personagem demonstra que é uma boa saga para se acompanhar! Cada uma dessas andanças a modificou de alguma forma. Inclusive usando nomes diferentes para cada uma das ocasiões: Luísa; Sinhá Luísa; Dona Luísa. Por este últimos nomes você já percebeu que ela vai conquistar um certo espaço de poder  e por causa desses espaços algumas das crenças da personagem entrarão em choque com seus negócios e estratégias de sobrevivência.

Um tema que era pouco conhecido para mim até essa leitura era o que acontecia com aqueles que conseguiam retornar para África. Como eles se reinseriam nas comunidades? Como eles eram recebidos? Essas e outras questões são respondidas na história quando a Kehinde consegue retornar a Uidá.

Mesmo não tendo grandes expectativas, fiquei decepcionada com a primeira impressão que tive de Uidá.

O retorno não é a África imaginada e então a personagem busca alternativas para se estabelecer e sobreviver em meio as disputas políticas e econômicas que aconteciam. Inclusive com a formação de um novo grupo de morados: os brasileiros – na verdade, os retornados.

Aos poucos fui conhecendo Uidá e ficando com mais e mais saudades da Bahia e de São Sebastião. Nela moravam alguns africanos que geralmente trabalhavam com comércio, mas a grande maioria morava nos campos e só ia à cidade quando tinha alguma coisa para vender,fruto das pequenas plantações ou de pastoreio. Tinham uma vida completamente separada dos brasileiros, que moravam quase todos na cidade, às vezes tomando ruas e bairros inteiros. Em algumas casas moravam até três ou mais famílias que geralmente tinham chegado no mesmo navio, do qual muito se orgulhavam. Quando um grupo de brasileiros se reunia, quase sempre havia comparações entre os navios nos quais tinham retornado, com cada um dizendo que o seu era o mais novo, o maior ou o mais bem equipado.

Não vou me estender no retorno porque isso já é mais no final do livro. Outro ponto sobre a protagonista é seus romances. Sim, Kehinde viveu muitos romances ao longo da história, uns bons outros péssimos. Aqui é outro ponto de reflexão da obra: pela condição de mulher negro, mesmo após a alforria, ela sabia que não podia depender dos homens com que se relacionava. Então ela vai sempre estar preocupada em não depender financeiramente de ninguém, inclusive, porque um de seus relacionamentos será com um português branco, o que para aquela época não era bem aceito.

Deixei por último a Kehinde mãe. Essa seja a parte da vida dela mais cheia de dores e felicidades para compartilhar. Ela é mãe muito cedo e então passa a se dedicar a comprar a alforria dela e do filho, busca cumprir todos os rituais religiosos para defender seus filhos. A maternagem de Kehinde é atravessada por desafios de ser uma mulher preta tentando garantir a sobrevivência dos seus, por isso, várias serão as partes de arrependimentos dela.  Ela vai se culpar por várias coisas que acontecem aos filhos como se ela nunca conseguiu alcançar o ideal de boa mãe, inclusive quando a culpa é totalmente do pai.

Os demais personagens:

O livro tem muitos personagens que eu nem me lembro seus nomes mais! Mas gostaria de deixar nessa resenha uma menção honrosa a alguns que contribuíram para o meu encantamento com este livro. Kehinde é uma personagem muito sociável, faz amigos ( e inimigos também) por onde passa e cada um deles é importante para a formação dela.

Fatumbi que está na citação sobre os muçurins é um dos que mais marcou! Ele era responsável para dar aulas particulares  a Sinházinha Maria Clara, mas acabou ensinando a Kehinde e dando livros escondidos para que ela continuasse estudando enquanto ele não estivesse na fazenda. Mais tarde os dois voltam a se encontrar e ele ajuda ela nos negócios em Salvador e depois introduz ela nas discussões dos muçurumins para luta pela liberdade, que resulta da Revolta dos Malês.

Esméria assume o papel de mãe da Kehinde assim que ela chega a fazenda. Ela será a guia da Kehinde em muitos momentos, transferindo ensinamentos religiosos e de outras natureza. Depois do nascimentos dos filhos ela se torna aquela avó que cuida de tudo e está sempre de olho nos perigos que rondam a Kehinde. Outro velho no sentido de guia da Kehinde é o Sebastião que também a acompanhará por muito tempo e terá um papel de avô para os filhos dela.

Tico e Hilário da mesma idade de Kehinde e foram importantíssimos para a organização dos negócios dela. Como duas crianças que andavam demais pela cidade eles sabiam informações sobre o que vender, onde vender. Durante um período tenso da narrativa é na casa de Tico que ficará o filho de Kehinde, Esméria e outros personagens. Depois que ela retorna para África Tico será seu elo com o comércio do lado brasileiro.

Vou encerrando por aqui esta resenha, mas você pode acompanhar mais sobre esse livro nesse papo que aconteceu no YouTube do Negras Escrituras:

Negras Escrituras

2 comentários em “Resenha Um defeito de Cor – Ana Maria Gonçalves

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