Sula | Toni Morrison [resnha]

Sula de Toni Morrison é um livro curto, mas com uma profundidade narrativa própria da autora. Toni Morrison tornou-se uma das minhas escritoras favoritas justamente por essa forma narrativa única. Eu tentei escrever essa resenha de uma forma superficial e curta, apenas para dar uma situada nos leitores. Esbarrei na grandiosidade de Sula. Então, esta resenha apresentará uma análise detalhada e indicações de leituras complementares que são outros textos da própria Toni Morrison e artigos acadêmicos sobre Sula.

No prefácio somos avisados por Toni que este livro seguirá seu estilo de escrita: “minha sensibilidade era extremamente política e veementemente estética”. Você encontrará muitas questões de crítica social as opressões racistas e de gênero dos Estados Unidos do início do século XX. Também encontrará diálogos e cenas que tocam e sensibilizam demais.

Eu poderia dividir esta resenha entre o que de fato está escrito no livro e as coisas não ditas. Toni deixa subentendido muitas cenas trágicas que cabem ao leitor conclui-la em sua mente. Sula é um livro sobre os sacrifícios que as mulheres negras fazem ao reivindicarem a liberdade. Também é um livro que trata de uma genealogia das mulheres negras. Quase todas as personagens sabemos a sua linhagem de forma breve.

Apresentando a comunidade

A história se passa numa comunidade negra, Fundão, colinas acima do vale de Medallion, em Ohio. A comunidade teria surgido ainda na epóca da escravidão quando um fazendeiro branco prometeu a liberdade a seu escravo, caso ele terminasse umas tarefas difíceis . Resultado, o escravizado consegue cumprir as tarefas, mas o fazendeiro não quer doar nenhum pedaço de sua terra fértil. Então num diálogo ele enganou o escravizado falando das colinas, do Fundão:

— Mas ficam lá em cima, na colina, disse o escravo.

“Lá em cima para nós” , disse o senhor, “mas, quando Deus olha para baixo, é a terra do fundão. Por isso que a gente chama assim. É o fundão do paraíso – a melhor terra que tem.”

No fim o escravizado aceita a terra que não é tão fértil quanto as do senhor e começa a comunidade negra.

O primeiro personagem que somos apresentados é Shadrack, um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, feriado fisicamente e psicologicamente pelas violências sofridas na guerra e na sociedade. Ao voltar para Fundão é considerado louco pela população, mas tinha certo poder sobre as pessoas. Shadrack institui na comunidade o Dia Nacional do Suicídio, que se torna uma data em que as pessoas celebrada e lembrada pelas pessoas. A inclusão desta data na narrativa é uma sensibilização da autora em relação aos traumas da guerra no personagem de Shadrack, enquanto o aceite da comunidade significa que esta comunidade negra está disposta a absorver todos os deslocados psicologicamente de modos traumáticos. Toni Morrison deixa explicito no texto “Coisas indizíveis não ditas” que ela pretendia começar a narrativa justamente com seguinte frase: “Com exceção da Segunda Guerra Mundial, nada nunca atrapalhou o Dia Nacional do Suicídio”. Depois de uma análise a autora achou que seria um falso começo, pois, ela queria mostrar uma visão sobre a comunidade que busca se manter firme e saudável diante de toda a opressão racial.

Sobre amor nas famílias negras

Em grande parte da literatura, a fuga da mulher do jugo masculino leva ao arrependimento, ao sofrimento, se não ao desastra completo. Em Sula, quis explorar as consequências do que essa fuga seria, não só em uma comunidade negra convencional, mas também na amizade feminina. – Trecho do prefácio

A amizade retratada neste livro é entre a protagonista Sula Peace e Nel Wright, cada uma representando uma forma de feminilidade. A família Peace é organizada estruturalmente pelo matriarcado. Eva Peace, a avó de Sula, após ser abonada pelo marido fizera um sacrifício no passado para garantir o sustento dos filhos. Era a dona de uma casa grande que acolhia muitos agregados, cada chegada uma reforma para caber todos. Eva é uma matriarca cuja vida nunca fora um mar de rosas. Plum, o único filho homem é atormentado pelos efeitos psíquicos da guerra, se torna um viciado em drogas cujo sofrimento leva a mãe a tomar uma decisão extrema.

Mais uma vez Toni Morrison nos questiona sobre os limites do amor materno. Aqui estou fazendo uma referência explícita a Amada, outra obra que autora explora o quanto mães pretas tomam decisões extremas para acabar com o sofrimento de seus filhos.

Sobre o amor entre as gerações de mulheres negras, preciso comentar sobre um diálogo entre Hannah – mãe de Sula- e Eva. Este diálogo é analisado por bell hoks no texto “Vivendo de amor”, segundo ela Eva simboliza o modelo de mulher negra forte, sempre está reprimindo as emoções para garantir a segurança material da família. O diálogo inicia com Hannah perguntando: “Mamãe, você já amou a gente?” Indignada, Eva inicia uma discussão que culmina no argumento todos os bens materiais que ela deu aos filhos: “Isso não é amor? Você quer que eu faça carinho no seu pescoço e esqueça das feridas na sua boca?”

A resposta de Eva mostra que a luta pela sobrevivência não significava somente a forma mais importante de carinho, mas estava acima de tudo. Muitos negros ainda pensam assim. Suprir as necessidades materiais é sinônimo de amar. Mas é claro que mesmo quando se possui privilégios materiais, o amor pode estar ausente. – bell hooks

Liberdade das mulheres negras

Hannah é a personagem que representa a liberdade sexual, com vários parceiros, sendo amante dos maridos das amigas e vizinhas. Resultando que todas as mulheres da cidade tinham um pé atrás com Hannah “as amizades femininas de Hannah eram, claro, raras e breves”. Sula cresceu vendo essas aventuras da mãe e entendendo que “o sexo era prazeroso e frequente, mas de resto desinteressante”.

Enquanto Sula convivia num lar governado pelas mulheres e cada uma representando uma forma de liberdade, Nel cresceu num lar patriarcardo marcado pela ordem. Helene Wright, mãe de Nel, vivia totalmente submissa as opressões raciais e de gênero. Ela era filha de uma prostituta e fora criada pela avó que podava seu comportamento à lembrando “do sangue selvagem da mãe”. Helene casou-se cedo com parente próximo que vivia viajando, trazia a casa sempre organizada e limpa, passando a filha ensinamentos sobre compostura e ordem.

Filhas de mães distantes e pais incompreensíveis (o de Sula porque estava morto; o de Nel porque não estava), acharam nos olhos uma da outra a intimidade que procuravam.

Assim somos apresentadas ao início da amizade entre Nel e Sula. No convívio das duas vamos percebendo as personalidades distintas. Na infância, as duas presenciam uma tragédia; de um lado Sula se desespera com acontecido enquanto Nel mantem-se calma, julgando inclusive por muito tempo o comportamento de Sula.

As personagens crescem e suas escolham são mediadas por essas personalidades: Nel aceita um casamento como seu porto seguro, Sula decide sair do Fundão para estudar. Depois de alguns anos Sula retorna ao Fundão. As duas voltam a se encontrar. Percebemos que a amizade continua a mesma até que suas escolhas se chocam.

Sula vive sua liberdade sexual sem apegar-se a nenhum parceiro, enquanto Nel reproduz a ideia de uma excelente dona de casa como aprendera com a mãe. Elas entram em conflito por uma situação envolvendo relacionamentos. E quando as duas se enfrentam temos um diálogo que é a síntese desse livro:

“Por quê? Se eu posso fazer tudo, porque não posso ter tudo? (SULA)

“Você não pode fazer tudo. Você é mulher e, aliás, é uma mulher de cor. Não pode agir que nem homem. Não pode andar por aí toda independente, fazendo o que bem enteder, roubando o que bem quiser, largando o que não quer.” (NEL)

“Você está se repetindo.”(SULA)

“Me repetindo como?”

“Você diz que sou mulher e que sou de cor. Não é a mesma coisa que ser homem?”

“Não acho que é e você também não acharia se tivesse filhos” (NEL)

“Aí eu realmente iria agir que nem o que você chama de homem. Todo homem que conheci na vida largou os filhos” (SULA)

[…]

“Você acha que eu não sei como é a sua vida só porque eu não estou vivendo ela? Eu sei o que toda mulher de cor deste país está fazendo.” (SULA)

“O quê?” (NEL)

“Morrendo. […]” (SULA)

Cada uma das personagens tem uma perspectiva em relação a liberdade como podemos ver na Nel dizendo que a Sula não pode fazer o que bem entender, assim como temos uma perspectiva sobre o que é ser mulher e negra na sociedade estadunidense à época do romance.

Sula é um romance curto, mas como você leu nesta resenha apresenta inúmeras camadas de análise. A escrita é extremamente linda, no aspecto estético, uma característica própria da Toni Morrison. Porém, a história carrega temas sensíveis como sofrimento psíquico, dores da maternagem negra, efeitos do julgamento da sociedade em relação a liberdade feminina negra, os controles sobre a sexualidade das mulheres.

Alguns textos que você pode consultar para aprofundar no pensamento de Toni Morrison:

UMA HISTÓRIA DE MULHERES: A GENEALOGIA FEMININA EM SULA, DE TONI MORRISON (Artigo)

TRADUZINDO A COMUNIDADE AFRO-AMERICANA DE TONI MORRISON EM SULA ( este aqui é um TCC)

 

Informações sobre o livro:
Título: Sula
Autora: Toni Morrison
Tradução:Débora Landersberg
Número de Páginas: 189
Editora: Companhia das Letras

Negras Escrituras

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