Solitária de Eliana Alves Cruz narra as relações patrões e trabalhadoras domésticas na sociedade brasileira contemporânea e os resquícios da colonização. Para Eliana Alves Cruz, o desafio de escrever um romance contemporâneo está em “tirar do lugar de banalização, de normalização práticas ainda arcaicas”.
Apresentação das principais discussões do livro
O tempo do livro é extremamente atual abordando políticas públicas de acesso ao ensino superior e até mesmo a pandemia de COVID-19. No luxuoso prédio Golden Plate se passa a história de Eunice e Mabel. Eunice, uma mulher negra, trabalhadora doméstica, que durante muitos anos foi “QUASE DA FAMÍLIA” de Lúcia e Tiago.
Solitária está divido em três partes que correspondem a narradoras diferentes: 1) Mabel – a jovem filha de Eunice, cuja perspectiva sobre as relações entre os patrões e a mãe são analisadas por um viés de poder e racismo; 2) Eunice, aos poucos toma consciência de que ela não é tão da família assim como os patrões dizem; 3) Uma terceira personagem que fora onipresente em todas as situações de violência presenciadas no Golden Plate.
A arquitetura que sempre foi organizada pelos amplos espaços aos patrões e espaços pequenos e insalubres as trabalhadoras domésticas também é retratado neste livro. Cada um dos capítulos é nomeado por cômodos da casa.
Personagens – Mabel
Mabel chegou à casa dos patrões da mãe ainda criança sem conhecer os limites territoriais da casa, isto é, a trabalhadora doméstica e seus filhos deveriam habitar somente o “quartinho da empregada”. Por várias cenas, na narrativa de Mabel vemos como os patrões vão ensinando que ela deve ser invisível para eles. Aos poucos, ainda criança Mabel assume serviço dentro da casa da família. Por meio dos estudos e leituras de outras mulheres negras – Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus- Mabel passa a questionar o lugar de subalternidade da mãe na relação com “Dona” Lúcia e Camilinha.
Uma boa serviçal é silenciosa, e a criança que é filha dessa mulher também deve ser. Ela não pode rir como uma criança, não pode pular ou fazer travessuras como uma criança. Ela não é uma criança.
Uma das cenas mais fortes de diálogo entre Mabel e Eunice é quando a primeira reclama a ausência da mãe. Enquanto Eunice esteve ocupada servindo Lúcia, Tiago e sendo mãe postiça de Camilinha, sua própria filha passou por uma situação difícil que não pôde contar com sua ajuda. Mais um resquício do período escravocrata em que mulheres negras maternaram os filhos dos senhores e não puderam maternar os seus próprios. Eunice toma consciência que a infância/adolescência da filha passou sem que ela pudesse materná-la. Eu me identifico muito com a narrativa de Mabel – talvez por uma questão geracional- porém, sinto que o ponto alto é voz de Eunice.
Eunice
Numa primeira leitura poderíamos dizer que a filha ao ser iluminada pelo saber formal, dialogando com a mãe a teria feito enxergar como a família dos patrões a haviam explorado. Porém, na parte narrada por Eunice percebemos como era complexo a relação que ela mantinha com a família dos patrões. Quando essas relações são mediadas pelo afeto, torna muito difícil a nossa percepção dos limites da exploração laboral e do afeto. Camilinha queria comer a feijoada de Eunice porque só ela sabia fazer do jeito que ela queria. A presença de Eunince na casa era sempre uma demonstração de afeto mediada pela prestação de algum serviço a família.
A atualidade de Solitária está, infelizmente, em situações que ainda vemos nos noticiários brasileiros. Mulheres negras mantidas em trabalho análogo a escravidão. Uma personagem do livro representa a história de Madalena e tantas outras que não conhecemos os nomes, mas que desde sua infância trabalham em casas de família, sem receber nenhum direito trabalhista, sem condições dignas de moradia. Várias personagens marcam essa perspectiva de que crianças negras não são vistas pela sociedade como crianças, mas pequenas serventes ou como diz Mabel:
A gente sempre foi miniatura de adulto.
Outro cruzamento da realidade com o livro é o caso do menino Miguel – menino de 5 anos que morreu após cair do prédio quando estava sob os cuidados da patroa – desde o início vemos a referência explícita desse caso na construção de cenas do livro.
Solitária tem esse papel de denúncia da reprodução de atitudes coloniais das relações no ambiente do trabalho doméstico. É um aviso para não normalizarmos o lugar da mulher negra como a serviçal das mulheres brancas.
Outros livros da autora que foram resenhados aqui: Nada digo de ti que em ti não veja (2020) ; O crime do Cais do Valongo (2018); Água de Barrela (2016).
Assista a resenha do livro no canal do Youtube:
Informações do Livro:
Nome: Solitária
Autora: Eliana Alves Cruz
Editora: Companhia das Letras
Número de Páginas: 168
Ano:2022