O romance Clara dos Anjos de Lima Barreto é uma obra que aborda o racismo na sociedade brasileira, especialmente o lugar social ocupado pelas mulheres negras, e a organização das cidades no Brasil. É um texto curto, narrado em terceira pessoa.
Personagens principais:
Clara dos Anjos, é uma jovem de dezessete anos que vive no subúrbio do Rio de Janeiro, cercada de proteção pelos pais. O pai era um carteiro que adora modinhas de violão e a mãe uma dona de casa que não deixava a filha fazer nada sozinha.
Clara era de natureza amorfa, pastosa, que precisava de mãos fortes que a modelasse e fixassem.
Clara é descrita como uma moça ingênua que não conhece da vida por causa do excesso de proteção. O narrador coloca a culpa nos pais da dificuldade da moça em tomar decisões e deixar-se enganar pelo personagem de Cassi Jones.
A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar que não lhe permitia meditar um instante sobre o seu destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera tinham muita culpa nisso tudo.
Cassi Jones é um homem branco que se envolve com mulheres pobres, preferencialmente aquelas que não tenham ninguém por elas, as desonram e as abonda. Ao longo do livro lemos as diversas atrocidades que ele é capaz de realizar para alcançar suas vítimas, mas sempre encontra um jeito de escapar da punição. Ora é um tio que trabalha no exército que interfere, ora é o próprio pai a pedido da mãe, ora é um conhecido que lhe deve favor. O certo é que Cassi Jones, mesmo sem ser de uma classe alta da sociedade consegue a proteção da polícia em todos os casos. Sua mãe é uma personagem que repete várias vezes a ideia que nunca pretende ver o filho casado com uma dessas moças.
A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira ou com uma moça branca lavadeira e analfabeta.
Ao participar de uma festa na casa de Clara, Cassi a escolhe como sua próxima vítima e, ela mesmo sabendo de toda sua fama se encanta com o modinheiro. No trecho do encontro dos dois, Lima Barreto explora uma musicalidade nascente no Rio de Janeiro com as rodas de violão, declamação de poemas e mais.
O lugar da mulata na sociedade brasileira
Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, mulata. Mas o que tinha isso? Havia tantos casos… Lembra-se de alguns…
Apesar de ouvir os pais, seu padrinho e muitas pessoas falando que Cassi Jones não era confiável, Clara não se atentava para o lugar social ocupado pela mulata na sociedade brasileira. No capítulo que narrador descreve Marranques, padrinho de Clara, é apresentado uma das preocupações de todos ao redor dela:
ele sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se tem as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar sua condição moral e social.
Este trecho me lembrou o artigo de Lélia Gonzalez “A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica” no qual a autora analisa o lugar social das mulheres negras no trabalho ao longo da história brasileira. É neste que ela defende que a mulher negra no Brasil é “objeto de tripla discriminação” já que os estereótipos gerados pelo racismo e sexismo colocam a mulher negra no nível mais baixo de nossa sociedade. A mulher negra não conseguiu ingressar no mercado de trabalho brasileiro como operária, coube a elas dois tipos de qualificação: doméstica e a mulata. Esta última é o modelo de exposição dos corpos de jovens negras para os turistas em desfiles de escola de samba. Para a autora as mulatas serão uma atualização do ditada racista brasileiro: “negra para trabalhar, mulata para fornicar e branca para casar”. Este ditado racista consegue sintetizar o romance Clara dos Anjos de Lima Barreto.
A jovem mulata foi objeto de desejo sexual de um homem branco que não pretendia comprometer-se com ela. Quando ela descobre que está sozinha com um filho na barriga, procura a mãe de Cassi que a recebe da seguinte maneira:
-Ora, vejam vocês só! É possível? É possível admitir-se meu filho casado com esta….
As filhas intervieram:
-Que é isto, mamãe?
A velha continou:
-Casado com gente dessa laia….Qual! Que diria meu avô, Lorde Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina – que diria ele, se visse tal vergonha?Qual!
Parou um pouco de falar; e, após instantes, aduziu:
-Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas…. É sempre a mesma cantiga … Por acaso, meu filho as amarram, as amordaça, as ameaça com faca e revolvér? Não. A culpa é delas, só delas….
Ao final desta conversa Clara percebe o que os pais e o padrinho tentaram o tempo todo protegê-la: diante da sociedade racista, sua palavra, sua virtude não valem de nada. Então a frase final deste livro é o despertar da protagonista para esta realidade:
-Nós não somos nada nesta vida.
Subúrbio
O subúrbio é outra parte que o autor explora para o contexto deste romance. Descrito como um lugar “cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obra inúteis e suntuárias, noutros pontos do Rio de Janeiro”. Os moradores destes subúrbios se diferenciam, ou sentem-se melhores que os vizinhos, por “uma diferença acidental de cor”.
Mais ou menos, é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em Inhaúma, Cachambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até as dez da manhã e há toda uma população de certo ponto da cidade no número dos que tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes.
Veja mais sobre Clara dos Anjos
Lima Barreto é um dos autores clássicos que demorei ter acesso a suas obras. Muito em função da forma como fora apresentado durante o período escolar: ele é até bom escritor, mas problemático, um alcoólatra. Ao colocarem o autor neste lugar de problemático, arrancavam a possibilidade da escrita de Barreto ser uma obra grandiosa, ocultavam sua cor e sua crítica social. Nos últimos tempos tenho buscado revisitar os clássicos negros para descobrir por que eu pouco tivera contato com eles. Assim fiz a leitura de Clara dos Anjos, nessa busca de saber mais sobre Lima Barreto. Tive o prazer de participar de um diálogo muito bom na extensão do Acontece IFCS da UFRJ, sobre esta obra. Você pode assistir essa conversa neste link:
Informações do livro:
Nome: Clara dos Anjos
Autor: Lima Barreto
Editora: Autêntica
Número de Páginas: 174