Amada | Toni Morrison [Resenha]

O livro Amada é considerado a obra-prima da Toni Morrison, primeira mulher negra a ganhar o Nobel de literatura em 1993. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1987, nos Estados Unidos, e por causa dele a Toni recebeu o Pulitzer de melhor ficção em 1988. Este foi meu primeiro contato com a escrita da Toni Morrison e achei incrível. É um livro sobre dores indizíveis que ela consegue encontrar palavras e forma para nos fazer sentir e lembrar dessas dores.

Sobre o que é a narrativa?

A narrativa é bem fragmentada e se trata da vida e memórias de ex-escravizados no ano de 1873, no período de restauração no pós-abolição nos Estados Unidos. A história é sobre Sethe, uma ex-escravizada, que vive numa casa com a filha, Denver e um fantasma. Para as personagens, o fantasma é bem conhecido: a outra filha de Sethe que morreu ainda bebê. Após alguns anos sozinhas, a chegada de Paul D ressurge memórias que Sethe buscava esquecer.

Informações Prévias à leitura

O livro é baseado numa história real, então se você ler o prefácio saberá o que é o grande clímax da leitura. Caso você deseja esperar as surpresas do livro, pule essa parte. Prepare para ler cenas de extrema violência, mas com uma estética que te emocionará diversas vezes. Este livro não é linear e você se sentirá confusa/o nas primeiras páginas. A dica é a seguinte: leia em voz alta, anote informações temporais (datas), faça uma genealogia dos personagens para se lembrar e sempre volte algumas páginas para ver se compreendeu bem o que está acontecendo. A própria autora nos diz que esse era um dos objetivos de sua escrita:

Na tentativa de tornar a experiência do escravo íntima, eu esperava que a sensação de as coisas estarem ao mesmo tempo controladas e fora de controle fosse convivente de início ao fim; que a ordem e a quietude da vida cotidiana fossem violentamente dilaceradas pelo caos dos mortos carentes; que o esforço herdeiro de esquecer fosse ameaçado pela lembrança desesperada para continuar viva.

Foi fácil para todas as pessoas sequestradas em África aprenderem que elas eram objetos do lado de cá do Atlântico? É um pouco essa confusão que Toni quer nos colocar durante a narrativa.

Resenha

Este com toda certeza foi um dos livros que mais me exigiu concentração para compreender os acontecimentos, pois aparecem muitas memórias e pensamentos no meio das cenas. Como é um livro em que o foco são as emoções reprimidas durante o brutal processo colonial, foi sufocante ler algumas cenas, mas a escrita da Toni é uma das mais lindas que conheci até agora.

Em algumas questões, podemos ter dificuldades de compreender devido à tradução, já que Toni se utiliza de um dialeto falado na região Sul dos Estados Unidos. Você vai encontrar várias palavras escritas grudadas como: gentepreta, moçabranca, gentebranca. Assim como, após o clímax, a narrativa se acelera e há uma parte sem pontuação para que nós leitoras/es escolhamos o ritmo da leitura.

“Eu tive oito [filhos]. Um por um foram para longe de mim. Quatro levados, quatro perseguidos, e todos, acho, assombrando a casa de alguém para o mal”. Baby Suggs esfregou as sombrancelhas. “Minha primeira. Dela só lembro é o quanto gostava da ponta queimada do pão. Dá pra acreditar? Oito filhos e é só disso que eu lembro.”

Na citação acima, você vê uma das primeiras falas de Baby Suggs, sogra de Sethe, cujo filho Halle (único que permaneceu ao seu lado) comprou a liberdade. Baby Suggs é uma das personagens que marca a descoberta de que ela era uma pessoa digna de amar e ser amada. A cena da liberdade dela é linda e vou deixar um pouco aqui:

Mas, de repente, viu suas mãos e pensou com uma clareza tão simples como surpreendente: estas mãos me pertencem; são minhas mãos. Em seguida, sentiu uma batida no coração. Teria estado sempre ali? Essa coisa pulsante? Sentiu-se boba e começou a rir alto.

Durante a narrativa, em vários momentos Toni discute esta questão das pessoas escravizadas se perceberem enquanto sujeitos capazes de decidir sobre suas vidas, assim como pontua questões com relação a autodefinição e de não deixar ser definido pelo homembranco [para seguir na mesma linha da escrita da autora]. Você pode ver um pouco sobre este conceito de autodefinição neste link [Pensamento Feminista Negro – Patricia Hill Collins].

A melhor coisa, ele sabia, era amar só um pouquinho; tudo, só um pouquinho, de forma que quando rompesse, ou fosse jogado no saco, bem, talvez sobrasse um pouquinho para a próxima vez.

Em relação às emoções, Toni foca nas perdas das mulheres negras, uma vez que eram utilizadas como reprodutoras para aumentar o número de escravizados nas fazendas. Durante a obra, acompanhamos as mulheres negras sofrendo porque sempre o senhor de escravos vendia e entregava os filhos como qualquer objeto. Toni trabalha com os traumas psíquicos da negação do ato de amar pelas famílias escravizadas. Essa ideia de amar só um pouquinho é repetida diversas vezes pela escritora para demonstrar que controlar o afeto era uma estratégia de sobrevivência dos escravizados. Um dica de leitura sobre isto é o texto “Vivendo de Amor”, da bell hooks. Ainda sobre a descoberta de que se é um sujeito capaz de amar, Baby Suggs faz um dos discursos mais lindos do livro:

“Aqui”, dizia ela, “aqui, neste lugar, nós somos carne; carne que chora, ri; carne que dança descalça na relva. Amem isso. Amem forte. Lá fora não amam a sua carne. Desprezam a sua carne. Não amam seus olhos; são capazes de arrancar fora os seus olhos. Como também não amam a pele de suas costas. Lá eles descem o chicote nela. E, ah, meu povo, eles não amam as suas mãos. Essas que eles só usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias. Amem suas mãos! Amem. Levantem e beijem suas mãos. Toquem outros com elas, toquem uma na outra, esfreguem no rosto, porque eles não amam isso também. Vocês têm de amar, vocês! E não, eles não amam a sua boca. Lá, lá fora, eles vão cuidar de quebrar sua boca e quebrar de novo. O que sai de sua boca eles não vão ouvir. O que vocês gritam com ela eles não ouvem. O que vocês põem nela para nutrir seu corpo eles vão arrancar de vocês e dar no lugar o resto deles. Não, eles não amam sua boca. Vocês têm de amar. É da carne que estou falando aqui. Carne que precisa ser amada. Pés que precisam descansar e dançar; costas que precisam de apoio; ombros que precisam de braços, braços fortes, estou dizendo. E, ah, meu povo, lá fora, escutem bem, não amam o seu pescoço sem laço, e ereto. Então amem seu pescoço; ponham a mão nele, agradem, alisem e endireitem bem. E todas as suas partes de dentro que eles são capazes de jogar para os porcos. vocês têm de amar. O fígado escuro, escuro – amem, amem e o bater do batente coração, amem também. Mais que olhos e pés. Mais que os pulmões que ainda vão ter de respirar ar livre. Mais que seu útero guardador da vida e suas partes doadoras de vida, me escutem bem, amem seu coração. Porque esse é o prêmio.” Sem dizer mais, ela se levantava então e dançava com o quadril torto o resto que seu coração tinha a dizer enquanto os outros abriam a boca e lhe davam música. Notas longas até a harmonia de quatro partes estar perfeita para sua carne profundamente amada.

A figura do fantasma, a filha mais nova de Sethe, é usada por Toni para que nós não esqueçamos a forma violenta que se desenvolveram as relações durante a escravatura. Toni nos quer lembrar de todos aqueles que perderam suas vidas, de forma física e simbólica, durante este período. É uma história que precisa ser lembrada!

 

Informações do Livro:

Título: Amada
Autora: Toni Morrison
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Número de Páginas: 363
Ano: 2007

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