O Crime do Cais do Valongo é um romance histórico, da escritora Eliana Alves Cruz. Ele se passa no Rio de Janeiro entre os anos de 1810 até 1835. O livro é fruto de pesquisas em jornais da época que servem como um marcador do tempo da narrativa, bem como deram base para a criação ficcional de Eliana.
Queria muito compartilhar minha experiência de leitura com o Crime do Cais do Valongo. Há muito eu ouvia falar sobre esse livro, mas só agora (2020) tive a oportunidade de lê-lo.
Assim como diz o seu título, o livro começa com um crime, o assassinato de Bernardo Lourenço Viana, e a investigação sobre os suspeitos. Contudo, o foco narrativo é em outras questões: como foi o sequestro dos seres humanos em África para a exploração no Brasil? Como era feita a viagem pelo Atlântico? O que acontecia com aqueles que não sobrevivam a travessia?
“Deixe-me contar que a história da criação dos homens por Nipele é linda. A mais bonita que já ouvi. Ela fez germinar homens a partir das raízes de um Embondeiro que existe dentro do monte Namuli — a chamada “árvore dos mil anos”, imensa! Já viu um? Aqui chamam mais esta árvore pelo nome “Baobá”. A grande Mãe mandou quatro de seus filhos descerem o Namuli para humanizar os territórios a norte do rio Zambeze. Este povoamento alastrou-se passando por Nampula, Tete, Cabo Delgado, Niassa, Malawi até o sul da Tanzânia. Somos muitos!”
Somos apresentados a esse cenário pelas mãos de Muana Lòmué, escravizada vinda de Moçambique que sabia escrever e se conectar com seus ancestrais. O outro narrador é Nuno Alcântara, negro de pele clara, filho de português com uma escravizada.
Durante todo o livro Muana narra a crueldade da escravidão, a qual retirava qualquer tipo de humanidade das pessoas negras. Ela narra o sequestro da família, como a viagem enlouquecera o pai, como ela perdera o amor da sua vida nessa travessia.
A discussão sobre a crueza da vida no Rio de Janeiro é muito forte principalmente pelo fato do lugar simbólico do Cais do Valongo, local em que os escravizados chegavam e aqueles que morriam na travessia eram jogados de qualquer forma no meio do lixo. Muana é a porta-voz desses que aqui chegaram sem vida, sem enterro decente, sem nenhuma tradição de passagem para o lado dos ancestrais. A cada página acompanhamos que o crime que iniciara a narrativa era pequeno se comparado aos demais que aconteciam no Cais do Valongo: a desumanização de homens e mulheres, negros e negras.
“Mariano é um mestiço de rosto comprido, pouca barba e sobrancelhas delgadas. Sua estatura é bem mais que a ordinária e é bastante forte, mas sua beleza feminina de rosto e seus modos delicados o fazem alvo constante de troças e violências diversas.”
Além de Muana acompanhamos a difícil vida de Roza, ainda uma menina, e Mariano, um chibano — homoafetivo, os outros escravizados de Bernardo. Eliane explora a vida de cada um dos escravizados presentes na trama demonstrando como, cada um à sua maneira, resistiam as violências do processo escravizador.
O crime que aconteceu no cais do Valongo é apenas um elemento da narrativa porque o livro é muito mais sobre como vivam as pessoas escravizadas no Rio de Janeiro daquela época. Eliana coloca no centro da narrativa com voz e protagonismo uma mulher negra escravizada, Muana, para narrar uma história apagada dos livros de História.
Foi um dos meus melhores livros do ano porque foi minha primeira leitura de um romance histórico com personagens negros no centro da narrativa. O encontro com os ancestrais que acontece mais ao final do livro foi despertar para pensar minha trajetória.
Informações do livro:
Título: O crime do Cais do Valongo
Autora: Eliana Alves Cruz
Ano: 2018
Páginas:196
Editora: Malê
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